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Āsana, da ancestralidade à popularidade:

 

 

No deserto de Thar, atual Paquistão, perto da fronteira com a Índia, existiu uma das mais antigas civilizações que se tem conhecimento. Sua existência durou entre 3100 a.C e 1900 a.C, e, como suas cidades margeavam os rios Indus e Saraswati, ficou conhecida como civilização do vale do rio Indus. Harapa e Mohenjo-daro foram seu maiores centros. Estima-se que Mohenjo-daro chegou a ter cinco milhões de habitantes, sendo, portanto, o lugar mais populoso do mundo em sua época. Essas cidades possuíam características peculiares e à frente de seu tempo quando comparadas com os Sumérios na Mesopotâmia (3500-2340 A.C), por exemplo. 

 

As escavações feitas nessas antigas cidades, principalmente por Sir John Marshall, entre 1920 e 1922, revelaram uma estrutura social e urbanística avançada. Para citar alguns exemplos, foram encontradas casas com banheiros no segundo pavimento, piscinas comunitárias, sistema de esgoto e irrigação, e uma grande produção artística e comercial. Foram descobertos inúmeros selos representativos e símbolos, que ilustravam um pouco de seus costumes e vestimentas, e altares de fogo descritos exatamente como nas escrituras Védicas. 

 

Estudos realizados no solo desta região indicaram que o rio que abastecia essas cidades secou por volta de 1900 a.C. Esse fato, provocado provavelmente por algum acontecimento climático ou geográfico na cabeceira do rio, teria forçado a população dessa região a migrar para a planície do rio Ganges e essa migração fez sua cultura se espalhar por diversas outras áreas. A História e alguns vestígios desses centros urbanos podem ser apreciados no museu de Nova Délhi, na Índia, e no museu britânico, em Londres. 

 

Um dos objetos encontrados nas escavações da civilização do vale do rio Indus é, provavelmente, o registro visual mais antigo que se tem conhecimento sobre um Āsana, ou postura de Yoga, como é popularmente conhecido. Trata-se de um selo com um homem sentado no meio, cercado por representações menores de animais e uma escrita que nunca foi identificada. A figura central é conhecida como Siva Pasupati, ou senhor dos animais. Nota-se que sua posição é um tanto inusual. 

 

A palavra Āsana deriva da raiz em sânscrito Ās, que quer dizer “sentar”, “deitar” ou “ficar”. No entanto, o termo Āsana, dependendo da interpretação que as diferentes tradições dão, possui um significado e um valor diferente. Alguns estudiosos, provavelmente mais engajados nos aspectos filosóficos do Vedānta e do Yoga, costumam traduzir Āsana ao pé da letra, interpretam-na apenas como uma postura para sentar. No caso, sentar para engajar-se em práticas meditativas. Além de basear-se na etimologia da palavra, esta interpretação é também sustentada pelo fato de não haver textos antigos que descrevam os diferentes āsanas dos quais temos conhecimento hoje. 

 

Os primeiros textos que descrevem os diferentes āsanas, e que não são apenas posturas sentadas, são datados do período da idade média, e além disso, apresentam poucas variedades de posturas. Assim, conclui-se que a prática dos diferentes Āsanas seja algo novo frente a ancestralidade do Yoga. Por esse motivo, dependendo do livro que lemos sobre Yoga, Āsana é muitas vezes traduzido simplesmente como assento, postura sentada ou até mesmo o pano, ou couro, em que se costumava sentar. Seguindo essa linha de pensamento, a imagem do selo achado nas escavações de Mohenjo-Dharo retrata apenas um ser sentado em postura para meditação. Isso porque acreditam que naquela época não se praticavam as posturas que temos conhecimento hoje. Essas outras posturas teriam sido elaboradas para um novo tipo de público, no caso, praticantes que estariam em um nível de qualificação inferior aos da era védica. 

 

A falta de habilidade para se sentar em postura ereta e imóvel para meditação por longos períodos fazia com que os praticantes necessitassem de uma prática preliminar. Essas práticas deveriam reeducar e purificar corpo e mente, e torná-los qualificados a entrar em estado meditativo para conseguirem meditar sobre os aspectos fundamentais da existência. Isso, acreditam muitos estudiosos, teria dado origem à prática de posturas, assim como a conhecemos hoje. 

 

De fato, o texto Haṭhayoga pradipika, o mais conhecido dentre os textos de Haṭhayoga, começa ressaltando a importância das práticas ali contidas para gerar clareza e ajudar na compreensão dos ensinamentos mais sutis transmitidos por Patañjali no Yogasūtra. No entanto, em momento algum alega que tais práticas seriam algo novo. Curiosamente, não é possível encontrar nesse texto, ou em nenhum outro, uma grande variedade de posturas.

 

Esta é uma visão sobre este assunto. No entanto, ao mesmo tempo, existem linhagens igualmente tradicionais que possuem outro ponto de vista. Eu as vejo como mais engajadas na experimentação das práticas de Yoga, pois as incorporam em suas rotinas e vivenciam em si mesmo seus efeitos. Baseiam-se nos textos tradicionais mas também na milenar tradição oral que vem carregando um legado de conhecimento através das gerações a milênios. Também vêm ensinando os diferentes Āsanas através desse sistema. Essas linhagens, por sua vez, acreditam que os inúmeros Āsanas sempre possuíram um papel útil, e não inferior, para uma boa leitura da psique humana, assim como sua lapidação e boa manutenção, e são antiquíssimas. Essa interpretação não vai contra o possível fato de que os praticantes da idade média estivessem realmente mais necessitados de práticas de purificação do que os do período védico. Isso provavelmente aconteceu, mas não quer dizer efetivamente que os diferentes Āsanas tenham surgido nesta época. Existem inúmeras explicações capazes de sustentar essa idéia. Posso citar alguns exemplos simples:

 

Os Vadyas, mestres da ciência do Ayurveda (conhecida como a medicina milenar da Índia), receitavam para seus pacientes Āsanas e Prāṇāyāmas como parte do tratamento e manutenção da saúde. Nas cerimônias Védicas, onde é preciso saúde e agilidade para fazer os movimentos com o corpo que acompanham as rezas em certos rituais, como agachar, deitar e se levantar seguidamente, por exemplo, podemos observar diferentes Āsanas. Sabe-se também que essas posturas são utilizadas por ascetas há milhares de anos para trabalhar a autodisciplina e também ajudar o corpo e respiração a se ajustarem as condições extremas do Himalaia. 

 

De fato os primeiros textos a explicarem o conceito de Haṭhayoga e descreverem Āsanas que não sejam posturas sentadas datam o século XIV. Mas isso não significa que estejam trazendo idéias novas. Na tradição dos Nāths, grupo que através de práticas purificadoras, buscavam a manipulação da energia vital para alcançar estados elevados de consciência, praticavam Āsanas. Acredita-se que os textos que trazem o conceito de Haṭhayoga foram baseados na tradição Nāth que possui uma linhagem ancestral. (Haṭhayoga é um conceito que diz respeito ao equilíbrio entre as dualidades do indivíduo para purificar a mente e possibilitar a realização do ser. Entre as diferentes práticas utilizava-se Āsanas). 

 

O selo encontrado em Mohenjo Dharo, e ilustrado abaixo, é a maior evidência concreta de que Āsana tem sido uma ferramenta utilizada desde aquela época. Trata-se realmente de uma postura sentada, mas ela comprova como estes indivíduos não só praticavam, mas já estavam avançados em relação ao domínio da prática dos diferentes Āsana.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O Āsana Mulabandhāsana é uma postura muito complicada. Por mais flexível que uma pessoa possa ser, é necessário anos de investigação, dedicação e prática para conseguir executar Mulabandhāsana. Inevitavelmente são necessárias inúmeras outras posturas para preparar corpo e mente para esta. Por este motivo, podemos afirmar que nesta figura estão representados inúmeros outros Āsanas que possibilitam a realização de Mulabandhāsana. Se o objetivo fosse apenas mostrar uma pessoa sentada meditando, o mais natural seria colocar um sujeito sentado apenas com as pernas cruzadas, e não com os pés para traz e o calcanhar torcido para frente. A postura recebe este nome devido ao Mulabandha. Mulabandha é uma ação interna realizada com o assoalho pélvico que mexe com as funções vitais desta área e estimula a energia vital (prāṇa). Isso mostra que a investigação sobre o corpo sutil já era conhecida naquela época e o Āsana era utilizado para esse fim.

Mulabandhāsana

Hoje, curiosamente, a prática de Āsana se tornou mais popular do que o próprio Yoga. Tais distorções parecem ser comum em nosso tempo onde tudo é visto de forma rasa e estereotipada. Isso acontece em todos os cantos. Basta refletir o que aconteceu com as datas religiosas, por exemplo, onde o verdadeiro significado de certos acontecimentos viraram obrigações ou simples ritos, e as datas históricas pensadas apenas como feriados. 

 

É um tanto natural que muitas pessoas enxerguem o Yoga apenas como Āsana. A popularidade dessa prática trouxe algumas distorções e empobrecimento sobre sua função, mas, vendo de um ponto de vista otimista, também permitiu que milhões de pessoas tivessem acesso a ela. O embrião do processo que resultou na popularização do Yoga em nossa era, originou-se a muito tempo. Isso ocorreu, provavelmente, no início do século XX. 

 

Devido à pressão de um processo colonizatório, em meados do século XIX, a Índia já tinha assimilado muito da cultura britânica. Este fato gerou um declínio no interesse da população em relação às práticas milenares da cultura védica. Tais conhecimentos mantinham-se vivos, mas cada vez em um grupo menor de pessoas. Isso motivou alguns indivíduos a trabalharem intensamente para que esta rica cultura permanecesse viva entre os novos hábitos e voltasse à popularidade. Entre as primeiras tentativas bem sucedidas neste período, estão a participação de Swami Vivekananda na conferência das religiões em 1893 na cidade de Chicago, EUA. A desistência por parte de Sri Aurobindo do engajamento político para total dedicação ao estudo da cultura védica e sua propagação, a vinda de Paramansa Yogananda também para os EUA em 1920, entre alguns exemplos.

 

No caso do Yoga, destacam-se a força de vontade de dois indianos vindos do sul para o norte da Índia na busca por aprofundamento, e que, posteriormente, dedicaram suas vidas para disseminar a semente do Yoga com engajamento e seriedade. É desta semente que hoje colhemos o fruto. Refiro-me a Sri Sivananda Saranwati (1887-1963) e Sri T. Krishnamacharya (1888-1989). Na década de 30, ambos trabalharam arduamente para difundir a proposta do Yoga e propagar sua mensagem. T.Krishnamacharya, por exemplo, viajava constantemente pela Índia fazendo palestras e, principalmente, demonstrações de Āsanas para capturar a atenção do público até então sem interesse. Āsana era a prática mais “palpável” para a maioria das pessoas que pareciam estar muito distantes de conseguirem se interessar, e principalmente se engajar, nos aspectos éticos e filosóficos do Yoga em um primeiro contato com esta filosofia. 

 

Krishnamacharya, através do patrocínio do marajá de Mysore, também abriu a primeira escola de Yoga e, durante sua longa vida também dedicou-se a uma abordagem individualizada e terapêutica do Yoga. T.Krishnamacharya era conhecido por seu vasto conhecimento nas diferentes ciências da Índia e por suas habilidades como curandeiro. Seus alunos Indra Devi, K. Pattabhi Joys, BKS. Iyengar e seu filho TKV. Desikachar, levaram seu legado a diante e foram grandes responsáveis pela disseminação do Yoga na índia e pelo mundo afora.

 

Sivananda fundou em 1936 o Ashram the Divine life Society, em Rishkesh, dedicado ao Yoga e ao Vedānta. Seus ensinamentos em Yoga tocaram milhares de vidas direta e indiretamente através de seus alunos, entre eles Satchidananda Saraswati (1914 – August 19, 2002), Satyananda Saraswati (1923-2009) e Vishnudevananda Saraswati (1927 – 1993)

 

Shri Yogendraji (1897–1989), que esteve nos Estados Unidos da América na década de 20, criou seu instituto com base em Mumbai, norte da índia, também foi um dos grandes colaboradores para que o Yoga fosse disseminado e ensinado para mulheres

 

A prática de Āsana foi muito utilizada por eles e por seus alunos devido a sua capacidade de conduzir o indivíduo a interiorização. Esse processo de “olhar para dentro de si” acaba despertando, posteriormente, uma vontade de se conhecer mais a fundo. Isso acaba conduzindo o praticante aos aspectos filosóficos do Yoga e, em muitos casos, fazendo com que o indivíduo o assuma como uma filosofia de vida. 

 

Sivananda e Krishnamacharya foram percursores por disponibilizar o Yoga para pessoas de diferentes classes, sexo, credo e nacionalidade. Sem dúvida, seus esforços, assim como os de muitos outros mestres que trabalharam pelo mesmo ideal, resultaram em frutos positivos.

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